A expansão das plataformas de hospedagem, como Airbnb, transformou milhares de apartamentos em “micro hotéis” dentro de condomínios residenciais brasileiros, acirrando o atrito entre o direito de propriedade individual e a garantia coletiva de segurança, sossego e preservação da destinação exclusivamente habitacional das edificações.
Juridicamente, o tema repousa sobre três pilares: (i) a função social da propriedade, prevista nos arts. 1.228 § 1º e 1.277 do Código Civil, que impõe ao titular deveres de convivência; (ii) a Lei 4.591/1964, cujo art. 10 III veda o uso diverso daquele consignado na convenção; e (iii) a Lei 8.245/1991, que enquadra a locação por temporada nos arts. 48 a 50, permitindo contratos de até 90 dias, mas sem conceber a elevada rotatividade típica da “locação curtíssima” via aplicativo.
Em abril de 2021, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça fixou baliza importante ao julgar o REsp 1.819.075/RS: havendo cláusula de destinação exclusivamente residencial, o condomínio pode impedir a locação de curtíssima temporada, por considerá-la atividade assemelhada à hotelaria e incompatível com a finalidade do edifício. O Tribunal também reconheceu que essa modalidade gera fluxo incessante de pessoas estranhas, elevando riscos de ilícitos e perturbando a tranquilidade dos moradores.
O assunto voltou à pauta do STJ com o julgamento do REsp nº 2.121.055/MG, no qual a proprietária de um imóvel recorreu da decisão que atendeu ao pedido do condomínio e manteve a proibição de locações por temporada por meio de plataformas virtuais, como o Airbnb.
No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o cenário é igualmente pulsante. Há julgados que buscam compatibilizar a função social da propriedade com a preservação do sossego condominial: em 2019, a 20ª Câmara Cível, no AI 0009744-53.2019.8.19.0000, determinou que um apartamento em Ipanema só pudesse ser locado por prazos mínimos de 30 dias e para até seis hóspedes, destacando que a alta rotatividade via Airbnb configurava uso nocivo e excedia os limites da destinação residencial.
No entanto, em 25 de janeiro de 2024, no processo nº 0819254-12.2023.8.19.0002 a 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis deu provimento parcial a recurso de proprietária, reconhecendo que a locação por temporada prevista no art. 48 da Lei 8.245/1991 não se confunde com hospedagem atípica, anulou as multas e impediu o bloqueio de acesso dos locatários contratados antes de assembleia que passou a vedar estadias inferiores a 90 dias, exigindo apenas comunicação prévia ao síndico e advertindo que restrições materiais precisam constar na convenção e não apenas no regulamento interno.
O legislador procura preencher esse vácuo normativo. O PL 2.795/2024, em tramitação na Câmara, pretende inserir o art. 50-A na Lei do Inquilinato, consagrando a locação por aplicativo como “liberdade econômica”, salvo proibição expressa na convenção condominial. Paralelamente, a Lei 14.405/2022 reduziu de unanimidade para 2/3 o quórum para alteração da destinação do edifício, facilitando ajustes nas convenções que queiram permitir ou vetar a prática. No âmbito municipal, o Rio de Janeiro discute Projeto de Lei nº 372/2025 que exigirá cadastro prévio, limite anual de dias e recolhimento de taxas turísticas.
Os conflitos materiais se repetem: porteiros sobrecarregados pelo vaivém de hóspedes, elevação de custos de água, energia e limpeza, escalada de barulho em horários impróprios e aversão dos residentes à sensação de hotelização predial. Para conter excessos, condomínios recorrem às multas graduadas dos arts. 1.336 § 2º e 1.337 do Código Civil. Outros adotam caução por meio de aplicativos de controle de acesso.
Diante desse mosaico, práticas de governança sugerem: (a) atualizar a convenção e o regimento interno para explicitar regras de locação temporária, convocando assembleia com quórum qualificado; (b) exigir cadastro prévio dos hóspedes, com identificação e prazo de estadia; (c) criar canais formais de mediação e registrar ocorrências para embasar multas ou ações; e (d) integrar sistemas de portaria remota, QR Code ou biometria para reforçar o controle de acesso, mitigando riscos de segurança e responsabilidade civil.
Enquanto não há desfecho no STJ a respeito do REsp nº 2.121.055/MG, assim como dos demais recursos em trâmite, que serão importantes para trazer mais clareza sobre o tema, e o Congresso não define a redação final do PL 2.795/2024, cada condomínio deve exercer sua autonomia privada de forma transparente, equilibrando o legítimo interesse de proprietários na monetização do imóvel com o direito coletivo à moradia tranquila. Em última análise, a locação de curtíssima temporada via aplicativo só florescerá de modo sustentável onde convenção, tecnologia e cultura de convivência se combinarem para transformar o conflito em oportunidade, preservando, ao mesmo tempo, a função social da propriedade e a atratividade econômica da economia compartilhada.